
“Torto Arado”, do brasileiro Itamar Vieira Junior, vence prêmio literário na França
Prêmios Jabuti e Oceanos, um dos mais importantes da literatura lusófona, também foram concedidos a Torto Arado
O livro “Torto Arado” , do escritor brasileiro Itamar Vieira Junior, venceu o prêmio francês Montluc Résistance et Liberté 2024. O título foi traduzido pela editora Zulma e ganhou o nome de “Charrue Tordue”.
O romance foi indicado ao prestigioso prêmio Booker Internacional, que seleciona anualmente os melhores livros estrangeiros traduzidos ao inglês e editados no Reino Unido ou Irlanda. A indicação foi anunciada no mês passado.
A obra, de 2019, também é vencedora dos prêmios Jabuti e Oceanos, um dos mais importantes da literatura lusófona.
O Montluc Résistance et Liberté premia “obras que promovam a análise, a reflexão, a reavaliação dos valores da resistência e da liberdade”. A instituição que o oferece, homônima à premiação, foi criada em 2018 para jogar luz sobre o Memorial Montluc, em Lyon, que foi uma prisão da Gestapo, a polícia secreta da Alemanha Nazista, durante o período em que parte da França foi ocupada por Hitler.
Torto Arado, o best-seller do colunista da Folha, que já vendeu mais de 700 mil exemplares desde a publicação no Brasil pela Todavia em 2019, concorre com mais 12 livros escritos em dez idiomas diferentes, incluindo lançamentos do albanês Ismail Kadare e do italiano Domenico Starnone.
Itamar Vieira fala sobre o livro Torto Arado
Quando o baiano de Salvador, Itamar Vieira Junior, 44 anos, foi parar no interior do Maranhão como funcionário do Incra, pasmou-se com o que descobriu. Encontrou lugares, situações e gentes que só conhecia da literatura dos anos 1940. Leitor na adolescência de Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e dos áridos poemas de João Cabral de Melo viu que a vida não mudara naqueles confins e mimetizava os dramas do Brasil rural de meados do século anterior. O passado não passara.
Este choque e suas longas reflexões estão na gênese de Torto Arado, um dos mais importantes romances dos últimos anos no Brasil, sucesso tanto de crítica quanto de público, o que atestam os quase um milhão de exemplares vendidos desde seu lançamento em 2019. Venceu o Prêmio Jabuti, maior galardão literário do país, e encetou uma carreira internacional. E vai ser transformado em série pela HBO Max. O segundo passo da trilogia iniciada por Torto Arado, o romance Salvar o Fogo, segue trilha similar.
Nesta conversa, ele conta sobre o papel crucial da terra e do território nas mentalidades do Brasil contemporâneo, mesmo dos brasileiros urbanos, lembra que, aqui, a escravidão ainda marca como ferro em brasa as relações humanas, discorre sobre o que a literatura pode fazer diante do quadro dramático de racismo, exclusão e desigualdade em um país tão diverso mas onde a grande maioria dos escritores são homens e brancos.
Pergunta – Seus livros, como Torto Arado, são atravessados pela questão da terra. E tens uma experiência como servidor do Incra, trabalhando 17 anos junto aos agricultores, sem-terra, quilombolas. Como essa experiência influenciou a tua literatura?
Itamar Vieira Junior – Influenciou profundamente. Como você disse, tenho 17 anos de trabalho no Incra com as populações do campo. Fui trabalhar no Maranhão, depois voltei pra Bahia, e conhecendo essa realidade, pude entender o Brasil de uma maneira melhor.
No campo, as marcas desse passado que nos divide, que nos fragiliza, ainda estão muito presentes. Foi fundamental para me questionar sobre muitas coisas, entre elas a nossa relação com a terra, o território, o lugar em que vivemos. Os livros estão retratando as populações do campo. Mas estou pensando em todos, estou pensando em nós, inclusive, que muitas vezes vivemos na cidade mas vivemos alienados desse direito ao chão que pisamos, a casa em que vivemos, a rua em que trafegamos. É um direito fundamental para todos os seres humanos.
Não há vida sem terra e sem território. Não por acaso todos os conflitos de que a gente tem notícia se dão justamente por isso, por essas pessoas que tem esse direito negado. Se pensarmos na realidade brasileira, vemos ver que há muitos ativistas, lideranças camponesas, ambientalistas, na linha de frente dessa luta e muitas vezes correndo risco de vida. Quantos não se foram nos últimos anos? Só este ano, quantos não morreram por causa dessa batalha? É uma batalha que nos atravessa há séculos. Então, nós que escrevemos e reescrevemos arte, literatura, no fundo estamos registrando o nosso tempo, escrevendo e refletindo sobre ele.
Pergunta – Você fala também que essa é uma questão estrutural da desigualdade que se vive no país…
Itamar Vieira Junior – Não tenho dúvida. Se formos pensar na história do Brasil, na opção que o Brasil fez enquanto nação, o acesso à terra nos dividiu e continua nos dividindo. No passado, foi reservado àqueles que podiam adquirir e não mudou com o tempo. O Brasil nunca realizou uma reforma agrária da maneira que deveria. Teve um grande contingente populacional de herdeiros da diáspora africana, o processo de abolição foi encampado por muitos abolicionistas e visava não somente a liberdade, mas também uma reforma agrária que desse oportunidade àquelas pessoas para viverem uma vida diferente, poderem subsistir. Mas isso não ocorreu e a gente vem arrastando esse problema há séculos.
Chegamos ao século 21 e esse problema está em pauta, continua sendo relevante. E digo porque tudo passa pela terra. Se a gente pensa na nossa segurança alimentar, essa é uma questão fundamental. No Brasil, há os que produzem para alimentar mas há os que produzem commodities para a balança comercial. E, vou citar a Maria da Conceição Tavares, nós não comemos PIB, nós não comemos commodities. Comemos alimento e ele vem do pequeno e do médio agricultor.
Dificilmente vamos encontrar um latifundiário que produz alimento para abastecer o país. Ele produz soja, produz cana-de-açúcar, produz bens que vão ser exportados. Precisamos refletir sobre isso. Nenhum país é desenvolvido se não tem sua população com segurança alimentar. Se não conseguimos alimentar a nossa população, se não consegue distribuir recursos, a reforma agrária é um tema que não envelhece. Precisa ser enfrentado e debatido ainda nos nossos dias. A questão da terra ainda nos divide, a desigualdade que remanesce dessa maneira de viver no campo
Pergunta – Trabalhando no Maranhão vistes a realidade dos romances que lestes, como Vidas Secas, e outros romances e poemas a situação do Nordeste. Vemos que a Bahia tem muita violência ainda. Aqui no Rio Grande do Sul também, com grandes latifúndios e a monocultura. Teus livros trazem de forma muito dura essa realidade. De alguma forma, tua literatura está influenciando esse debate?
Itamar Vieira Junior – Acho que a literatura tem uma contribuição muito pequena. Mas é inevitável pensar que aqueles que leram ou irão ler essas histórias se não vão se questionar sobre tudo isso. O debate deve estar em todas as instâncias da sociedade, sobretudo no espaço político, no Congresso, nas associações comunitárias, nos partidos políticos, nas escolas, nas universidades. Precisamos falar sobre tudo isso. É uma coisa que ainda nos divide. A questão da terra ainda nos divide, essa desigualdade que remanesce dessa maneira de viver no campo.
Se a gente pensar, tudo tem origem no campo. As pessoas que habitam as áreas precarizadas das cidades, muitas vieram de processos de migração, eram desterradas, estavam sem terra, e tiveram que vir para a cidade, habitar lugares sem infraestrutura, passando pelas mesmas coisas por que passavam lá. Não se pode passar mais um século evitando falar sobre isso. Só vamos estar empurrando nosso futuro para o abismo, que é para onde a gente está indo. A escravidão continua sendo um problema porque a gente reproduz práticas escravistas
Pergunta – Em Torto Arado está essa questão: com o fim da escravidão, os ex-escravos não tiveram acesso à terra. É um debate que vem junto com o racismo estrutural…
Itamar Vieira Junior – Com certeza, foram quase quatro séculos de escravidão e temos pouco mais de um século de abolição. E uma abolição incompleta, porque não veio acompanhada das políticas públicas necessárias para inserir essas pessoas num espaço social igualitário. Então, a escravidão continua sendo um problema para o Brasil, até porque a gente reproduz práticas escravistas. Não por acaso a imprensa dá conta de pessoas resgatadas no campo e na cidade em situação de escravidão. Não são uma ou duas pessoas e tem ocorrido com frequência.
Existe uma maneira de explorar o trabalho humano que não foi desconstruída. Se as pessoas negras e indígenas ocupam as camadas mais fragilizadas da nossa sociedade é porque esse problema nunca foi enfrentado. Há um ranking de vida e valor que nunca foi desconstruído. As pessoas negras tem os piores índices sociais. Tem ocupado massivamente as penitenciárias e outros espaços de repressão que aviltam a dignidade humana. Daí a escravidão ser um tema urgente.
Pensar o Brasil a partir dessa chaga que nunca nos abandonou. A literatura, talvez com a sua capacidade de nos permitir viver a vida das personagens, possa fazer a gente refletir. Mas a solução passa longe da arte. Vai se resolver nos espaços de debate. A solução seria através das políticas públicas. Mas não se pode esperar isso dos políticos. A política é algo que deve ser vivido e exercido por todos nós. Precisamos saber em quem vamos votar, conhecer nossos candidatos, debater, pressionar. Não basta eleger. É preciso participar da vida política do país. Vivemos uma democracia frágil mas essa democracia esteve por um fio
Pergunta – E a gente vem de um período em que a política sofreu um descrédito, foi criminalizada.
Itamar Vieira Junior – Vivemos uma democracia frágil mas essa democracia esteve por um fio. Isto que chamamos de democracia porque ela está incompleta também. Não acolhe todos. Não permitiu que esse país seja um país para todos. Mas esse fio de democracia é importante para todos nós. Todos os avanços civilizatórios se deram nesse curto período democrático da nossa história.
Não podemos viver sem a democracia. Devemos participar ativamente da vida política do país, desde as associações de bairro até as eleições federais. A gente batalha, entra em campanha para eleger aqueles que achamos os mais preparados para resolver os nossos problemas. Mas mesmo depois de eleitos, não se pode deixar tudo ao Deus dará. Temos que provocar o debate, assumindo responsabilidades e compromissos também. Espero que o que vejo nos bairros e comunidades rurais se reflita no Congresso e no Judiciário
Pergunta – Tem outra característica nas tuas obras que são as mulheres fortes. Isso vem de uma referência tua, pessoal?
Itamar Vieira Junior – Vem de uma referência familiar, também do tempo em que vivemos que não aceita que a mulher ocupe os lugares mais recônditos da sociedade. Penso sobretudo nas comunidades rurais, nas associações de bairro, porque infelizmente o nosso Congresso ainda é um espaço conservador e as mulheres são minoria ali. Espero que tudo isso que vejo acontecer nos bairros, nas comunidades rurais, se reflita nas instâncias de poder do país, no Congresso, no Judiciário.
Estamos aí com uma vaga em aberto no Supremo Tribunal Federal. É importantíssimo que esse lugar seja ocupado por uma mulher. É importantíssimo que seja sobretudo ocupado por uma mulher negra. É importante para a nossa história. Venho de uma família conservadora, onde os homens reproduziam o machismo de muitas maneiras e as mulheres eram insubmissas. Eram aquelas que não aceitavam a violência caladas, que reagiam. Vi essas mulheres representadas de muitas maneiras nos espaços por onde passei, trabalhei e vivi.
Tudo se reflete naquilo que escrevo. É importante que a minha escrita reflita sobre o meu tempo. Durante muitos anos, a Igreja foi a maior detentora de escravizados do Brasil.
Clique aqui e leia a entrevista de Itamar Vieira Júnior à Agência Pública.
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